Educar para um futuro incerto

Anna Penido* Diante da velocidade […]

3 de maio de 2019

Anna Penido*

Diante da velocidade e profundidade das transformações que marcaram o início de século XXI, não há nada mais certo em relação ao futuro do que a sua própria incerteza.

As mudanças climáticas transformam o planeta. As novas tecnologias redefinem a vida humana. Os processos migratórios e as mudanças de comportamento provocam choques culturais. A competitividade modifica as relações econômicas e gera novos contextos políticos e sociais. E todas essas movimentações aprofundam os níveis de insegurança e ansiedade dos indivíduos, que têm dificuldade de caminhar por terreno tão movediço e ameaçador.

São poucas as garantias e muitos os desafios que nos afetam no nível individual, local e global, demandando novas capacidades, soluções e regulações. Simultaneamente, crescem as dúvidas e expectativas em relação à educação e seu poder de preparar as novas gerações para enfrentar uma realidade futura bastante nebulosa, mas também de capacitá-las para reduzir os impactos negativos e ampliar os benefícios trazidos por todas essas mudanças.

Conhecimentos tradicionais continuam sendo importantes, mas não se mostram suficientes para assegurar que as pessoas se realizem no âmbito pessoal, social e profissional, muito menos para que interajam com as questões próprias da contemporaneidade e participem da construção de um mundo melhor para si e para os demais. Cientes desse desafio, especialistas e organizações de todo o mundo apontam para a necessidade de revermos o que se ensina e se aprende nas escolas.

Como consequência, diversos países promovem  reformas curriculares com o intuito de aproximar a educação do seu projeto de nação, de maneira que crianças, adolescentes e jovens sejam preparados para se orientar e se realizar em um mundo em constante mudança, bem como contribuir para o alcance de objetivos nacionais e globais de médio e longo prazos.

No Brasil, essa oportunidade surge com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e o Novo Ensino Médio, que definem o que todos os estudantes brasileiros precisam aprender.

Desafio profissional

As tecnologias modificam cotidianamente os fazeres e ambientes de trabalho. Tarefas repetitivas passam a ser realizadas por máquinas, enquanto os profissionais se diferenciam por suas habilidades humanas. Criam-se novas profissões, muitas se transformam e outras deixam de existir.

Diante dessa nova realidade, cabe às escolas desenvolver a capacidade dos indivíduos de continuar aprendendo ao longo da vida, para que adquiram novos conhecimentos conforme se fizerem necessários. Para tanto, é importante motivar os alunos a valorizar e buscar o conhecimento de forma cada vez mais autônoma, acessando as mais diversas fontes, bem como selecionando, contextualizando e aplicando as informações que obtém. Os estudantes também precisam ser estimulados a pensar sobre a sua própria aprendizagem, para serem capazes de identificar o que precisam aprender e como aprendem melhor.

A rápida obsolescência de conhecimentos técnicos demanda ainda que os currículos das instituições de ensino contemplem competências mais transversais, como flexibilidade, criatividade, trabalho em equipe, resolução de problemas, inovação e empreendedorismo.

Realização pessoal

A ausência de respostas únicas e a dificuldade de prever o que acontecerá potencializa o surgimento de tensões emocionais, que afetam crianças, adolescentes e jovens de forma cada vez mais precoce e aguda. Proliferam os casos de hiperatividade, apatia, agressividade, depressão, automutilação e suicídio.

Algumas dessas questões requerem tratamento psicológico ou psiquiátrico. No entanto, a escola que se propõe a preparar os estudantes para a vida também tem o papel fundamental de ensiná-los a lidar melhor com suas emoções e relações. Para tanto, os currículos da Educação Infantil ao Ensino Médio precisam desenvolver a capacidade dos alunos de conhecer, apreciar e cuidar de si mesmos, bem como de reconhecer, expressar e lidar com seus sentimentos, respeitando e acolhendo a sua essência.

Especialmente em relação aos adolescentes e jovens, é imprescindível que as escolas os estimulem a ter aspirações e a identificar caminhos para alcançar os seus objetivos presentes e futuros. As práticas pedagógicas e o ambiente escolar também precisam favorecer o desenvolvimento de competências como determinação, resiliência e autoconfiança.

Choque cultural

O mundo será cada vez mais urbano, e grande parte da população continuará se movendo em direção às grandes metrópoles. Paralelamente, processos migratórios de nível global já estão mudando a face dos países e o aumento da diversidade tende a ampliar os níveis de estranhamento, intolerância e xenofobia.

Conquistas civis e sociais também continuam provocando transformações profundas na forma de pensar e no comportamento de indivíduos e grupos sociais. Mudanças de percepção em relação aos fatos do cotidiano e de legislação impactam significativamente questões como o papel da mulher, a identidade de gênero e orientação sexual, os diferentes arranjos familiares, a inclusão de minorias étnicas e raciais, entre tantas outras. Como consequência, prevê-se a intolerância e a violência contra aqueles que, apesar de terem seus direitos garantidos por lei, ainda são vistos com estranhamento.

Esses novos cenários modificam o próprio ambiente escolar, onde conflitos dessa natureza também se intensificam. Diante desta realidade, faz-se necessário educar as novas gerações para valorizar e conviver com a diversidade e a transitar por contextos culturalmente diversos com competência, respeito e apreciação. Assim, poderão atuar como mediadores culturais, construindo pontes entre os diferentes e minimizando os impactos negativos gerados pelas mudanças em curso.

Transformação social

Ao contrário do que se imaginava, o aumento da riqueza produzida no mundo não foi capaz de acabar com a pobreza, nem reduzir as desigualdades. Pesquisas demonstram que a distância entre ricos e pobres está aumentando, tanto em relação às pessoas, quanto aos países. Crescem os níveis de violência que têm como origem as injustiças sociais.

A reversão dessas tendências depende também da forma como educamos as nossas crianças, adolescentes e jovens. Currículos conectados com os principais desafios da humanidade se preocupam em desenvolver competências como empatia, diálogo e colaboração, imprescindíveis para que as novas gerações tenham uma atitude mais justa, inclusiva e solidária em relação aos demais.

A educação deve ser capaz de fortalecer a coesão e a justiça social, desenvolvendo nos estudantes a capacidade de pensar criticamente sobre as questões sociais locais e globais, perceber-se como agente de transformação e criar soluções para os desafios que se apresentam.

Preservação ambiental

O planeta também está se transformando de forma rápida e inequívoca, ainda que muitos tentem relativizar os efeitos das mudanças climáticas. O crescimento populacional e o impacto da vida humana na Terra exaurem recursos naturais, comprometem a qualidade de elementos vitais, como a água e o ar, e nos colocam o desafio de repensar a intensidade das nossas pegadas, sob pena de comprometermos a nossa própria existência.

Temos de utilizar a inteligência e a disposição para modificar a maneira como nos relacionamos com o ambiente social, cultural e natural, por exemplo. A mudança, no entanto, precisa começar desde cedo, para garantir a incorporação de atitudes e comportamentos mais sustentáveis.

As instituições escolares e a família têm papel preponderante na educação de crianças, adolescentes e jovens para que se conscientizem sobre o impacto de suas ações para o planeta, adotem comportamentos ambientalmente responsáveis e sejam defensores e promotores da sustentabilidade.

Participação cidadã

Em meio a todas essas mudanças, ampliam-se os questionamentos em relação aos sistemas vigentes, que se mostram incapazes de promover desenvolvimento econômico aliado a liberdades civis, direitos humanos, justiça social e preservação ambiental. Surgem novos arranjos, em geral acompanhados por divergências e polarizações, que se amplificam por meio de redes sociais.

No âmbito da ética, as ambiguidades se avolumam, colocando as normas vigentes em cheque e demandando mudanças importantes no campo da regulamentação. Novas legislações surgirão ou se modificarão para dar conta dos dilemas emergentes, muitos deles relacionados ao uso das tecnologias, especialmente as de informação e comunicação.

Essas novas circunstâncias demandarão novos papéis e responsabilidades da sociedade civil, levando a novos formatos de organização, mobilização, controle social e envolvimento popular na solução de questões de interesse público.

Grande parte desse empoderamento cívico e social tem seu início na escola, quando os estudantes dispõem de espaço para discutir e vivenciar a sua cidadania, aprendendo a tomar decisões éticas, a se envolver em processos democráticos e a se corresponsabilizar por desafios coletivos.

Nesse sentido, é fundamental que os currículos escolares desenvolvam a sua capacidade de compreender e refletir criticamente sobre os modelos políticos e econômicos vigentes para que possam transitar por eles com propriedade e contribuir para a construção de propostas mais justas, inclusivas, democráticas e sustentáveis.

Em relação às tecnologias, os alunos precisam se conscientizar do impacto que elas geram na sociedade e aprender a utilizá-las de maneira ética e significativa, inclusive como instrumento de poder e participação. Além disso, devem se atentar para os riscos de manipulação e exposição, especialmente por parte das redes sociais.

Importante destacar que muitas das competências que passam a integrar os currículos escolares ao redor do mundo não são necessariamente novas, mas tornam-se cada vez mais indispensáveis diante das mudanças que vêm ocorrendo ao longo do século XXI.

Para que sejam bem implementadas, as reformas curriculares devem vir acompanhadas de revisões igualmente profundas sobre práticas pedagógicas, materiais didáticos, ambientes escolares e sistemas de avaliação da aprendizagem. Foco no aluno, personalização, uso de tecnologias e metodologias ativas, aprendizagem mão na massa, mobilidade e flexibilidade de espaços dentro e fora da escola são algumas das tendências que dialogam com essa proposta.

Uma vez voltados ao desenvolvimento dos estudantes em todas as suas dimensões (intelectual, social, emocional, física e cultural), os currículos contemporâneos também precisam ser compreendidos como um desafio que não se restringe às unidades escolares. Sua implementação demanda o esforço conjunto de diversos atores, incluindo as famílias, as comunidades do entorno, bem como as áreas de saúde, cultura, esporte, tecnologia e desenvolvimento social.

Só assim conseguiremos preparar as novas gerações para navegar por mares de imprevisibilidade, incertezas e constantes mudanças.

*Jornalista formada pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), com especialização em Direitos Humanos pela Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, e em Gestão Social para o Desenvolvimento pela UFBA. Em 2011, participou do programa Advanced Leadership Initiative da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. Trabalhou como repórter para o jornal Correio da Bahia e para as revistas Veja Bahia e Vogue. Integrou as equipes da Fundação Odebrecht e do Liceu de Artes e Ofícios da Bahia. Fundou e dirigiu a Cipó – Comunicação Interativa. Coordenou o escritório do Unicef para os Estados de São Paulo e Minas Gerais e foi diretora do Instituto Inspirare (2012-2020). Atualmente, é membro da Ashoka Empreendedores Sociais e diretora do Centro Lemann de Liderança para Equidade na Educação.