A criança como sujeito ativo de direitos

Fátima Pacheco* Para falarmos de […]

12 de março de 2019

Fátima Pacheco*

Para falarmos de educação, precisamos falar sobre infância e refletir sobre nossos valores, concepções e crenças. Também precisamos compreender o conceito de criança e, pelo menos, alguns entendimentos que essa palavra tem assumido ao longo do tempo. Cada momento da história, com suas especificidades sociais, econômicas e políticas a interpretou a sua maneira. E da Revolução industrial até hoje muito tem mudado.

Na Modernidade, período em que a humanidade ocidental viveu uma sociedade estática e enformada pela prática industrial, entendia-se a escola como meio de promover uma organização social que se regulasse aos cotidianos. A criança nessa realidade era vista como alguém que viria a ser. Ou melhor, alguém moldável que, desde que bem moldado, viria a ser um sujeito produtivo.

Hoje vivemos um tempo em que a volatilidade é uma constante, o que nos obriga a práticas sociais e escolares cada vez mais exigentes. A mercê de todo o avanço tecnológico, a informação, antes privilégio de uma classe que tinha direito – e, por extensão, acesso –, começou a se democratizar. Ela passou a entrar nos lares como um direito humano fundamental. É neste contexto que precisamos refletir sobre o papel da educação e da escola na infância, em especial na Primeira Infância, termo que se cunhou para designar os primeiros seis anos de vida de uma criança.

Sabemos da importância da transmissão da cultura entre gerações. Sabemos também que essa cultura não só se transmite, como também se transforma pela vivência, pela compreensão do mundo e pela forma particular como cada indivíduo apreende esse mundo. Crianças também são indivíduos. O que as crianças aprendem não é o resultado automático do que lhes é ensinado. Uma criança protagonista ativa aprende como consequência de suas próprias realizações, ou seja, pelo diálogo, pela interação com os outros, pela experiência da vida coletiva com seus pares, com a cultura e com os adultos significativos.

Nesse sentido, a educação precisa ser um desafio social e intelectual com interações ricas e complexas – e não uma somatória de técnicas que vise a incorporação de saberes resultantes de um trabalho desprovido de sentido e baseado em mera repetição, pronto a ser reproduzido em escala.

Temos plena consciência de que as crianças são capazes, de um modo muito peculiar, de extrair significado de suas experiências cotidianas, envolvendo processos mentais de planejamento, coordenação de ideias e abstrações. O papel primordial de nós adultos é ativar nas crianças, de forma indireta, a competência de extrair significados, interpretar gestos, palavras e ações que formarão as bases para suas futuras aprendizagens. O modo como o adulto se relaciona com a criança influencia o que as motiva e o que elas aprendem.

Atualmente, por meio de muitas pesquisas confiáveis, sabemos que a Primeira Infância – e a maneira como ela é vivida – tem ligações diretas com o desempenho cognitivo, físico e emocional por toda a vida. Um bom ambiente de aprendizagem deve ser preparado para permitir interligar os campos cognitivo e os da relação e afetividade, o pensamento e a ação, a autonomia individual e a capacidade de trabalhar em grupo. O ambiente também deve propiciar que as crianças se expressem em diferentes linguagens simbólicas, em contextos e em processos. Esse espaço físico e social deve fomentar a comunicação e a construção de redes de trocas recíprocas entre as crianças e entre estas e os próprios adultos.

Acreditamos que uma sociedade que se entende democrática só terá futuro se, desde muito cedo, as crianças experienciarem e viverem uma educação com base nos princípios que estruturam a ideia de democracia. Nesta perspectiva, defendemos a participação ativa da criança nos processos de decisão de sua aprendizagem, considerando que esta é competente para se relacionar e interagir com respeito pelo outro, aceitar as diferenças e identificar conflitos e erros como um processo natural de desenvolvimento de sua identidade.

O envolvimento das crianças na gestão de atividades constitui-se como uma oportunidade para a construção de pensamento e linguagem que, operando juntos na formação de ideias, planejamento, execução, regulação, explicação e discussão, promovem o desenvolvimento de suas competências de autonomia.

Educar uma criança envolve compartilhar ideias, discutir pontos de vista, apoio e solidariedade entre escola, profissionais e família. Envolve escutar atentamente para aprender a observar o que as crianças fazem, como refletem, equacionam hipóteses e mostram caminhos que possibilitam outras experiências. Essa escuta e observação só ganharão significados se forem criadas condições ambientais e organizacionais que articulem desenvolvimento e aprendizagem. Uma dessas condições ambientais diz respeito ao brincar.

Foram vários os pensadores que defenderam a ludicidade como uma prática essencial no ato educativo. Pestalozzi considerava que a escola deveria trabalhar conceitos como responsabilidade e normas de cooperação recorrendo ao jogo. Dewey defendeu que as crianças deveriam aprender segundo seus interesses e que a aprendizagem só seria possível em ambiente natural, verificando-se que em um jogo a criança seria mais espontânea. Piaget considerava o jogo como meio para o desenvolvimento intelectual e para Vygotsky a brincadeira era resultado das influências sociais que a criança recebia do meio envolvente.

Apesar da observação desses importantes pensadores, a brincadeira ainda não é amplamente reconhecida como uma forma natural de aprender de uma criança. Diferente do que muitos ainda acreditam, o brincar não se restringe a uma ação de simples entretenimento. O brincar envolve atividades que estimulam a criança e aprimoram comportamentos relacionados à persistência e à concentração. Qualquer atividade que inclua ludicidade fortalece a implicação da criança, abre um campo semântico de observação e cria desafios que alargam e aprofundam seus interesses.

Nesse campo do brincar a comunicação expressa-se de modo livre e garante a circulação de ideias, a partilha de atividades e a cooperação. Até mesmo em pequenos conflitos as crianças constroem, em conjunto, seu conhecimento sobre o mundo.

Longe da lógica assistencialista que via a criança como um ser carente, frágil, dependente e passivo – e que justificou a construção de rotinas e procedimentos rígidos que a mantinham direta e exclusivamente dependente do adulto­ –, a nova concepção de cuidado é entendida como afeto, acolhimento, segurança, interação, estimulação e brincadeira. Nessa concepção, são incentivadas atividades que propiciem exploração e descobertas para valorizar a criança singular, que sente e pensa o mundo com as idiossincrasias próprias das interações entre as pessoas e o meio que as circundam. Afinal, a criança não vai se tornar um sujeito, ela já é um e necessita viver numa rede com a qual possa se identificar e se sentir compreendida e reconhecida. O grande desafio das escolas de Educação Infantil  e também das famílias é: olhar a criança como um ser humano único e irrepetível, cujo trajeto de desenvolvimento e experiência são também únicos. É essencial olhar para a criança procurando descobrir sua complexidade e sua cultura social e familiar; nessa prática é possível ajudá-la a descobrir-se na sua relação com os outros.

*Licenciada em Ciências da Educação pela Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto (FPCE-UP), com certificação em Consultoria de Programas de Gestão Escolar de Qualidade pela Fundação L’Hermitage. Participou do desenvolvimento do projeto Fazer a Ponte, na Escola da Ponte, em Portugal; e organizou diversos livros que surgiram de cursos realizados on-line pela empresa Aquifolium Educacional. Atualmente presta assessoria educacional em diversas escolas.